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Um trem pras estrelas

 

Faz tempo que o epíteto "locomotiva do Brasil" deixou de exibir apenas sua face luminosa, símbolo da força desenvolvimentista de São Paulo. Ao nos reconhecermos em tal epíteto perdemos o controle da cidade, que cresceu

e continua a crescer desmesuradamente, balizada principalmente pelos interesses econômicos da iniciativa privada,

que impedem a construção de um espaço público verdadeiramente público e democrático. Já faz tempo também

que a chamada indústria musical deixou de ser o espaço de construção e renovação da linguagem de música popular

no Brasil, com as grandes gravadoras patinando atrás de suas cifras bilionárias perdidas na era digital e as estações

de rádio loteadas por grupos políticos e religiosos. Uma lógica semelhante a do mercado imobiliário parece reger

a indústria da música: a busca incessante pelo maior lucro no menor espaço de tempo possível. É justamente sua

clara oposição a este modelo que faz da Casa de Francisca um lugar tão especial.

 

A começar por seu pequeno sobrado datado de 1913 e sua diminuta plateia de 44 lugares, a escala pretendida ali é

de outra dimensão. Se as ambições desmedidas da sociedade contemporânea miram o monumental, o superlativo, o imediato e em última instância o descartável, o que se vê e o que se ouve na Casa de Francisca nos remete ao íntimo,

ao artesanal, ao perene. Um amigo gostava de dizer à época do lançamento de Titanic, quando este se tornou a maior bilheteria da história do cinema, que se fosse possível somar todos os espectadores que assistiram a Acossado, a obra-prima de Jean-Luc Godard, desde seu lançamento em 1960 até os dias de hoje, o filme registraria um público superior à megaprodução hollywoodiana. Ainda que tal provocação não represente a realidade, ela diz muito sobre o alcance atingido por cada uma dessas produções. De natureza godardiana, a pequena Casa de Francisca já extrapolou em muito seu espaço físico e seus oito anos de vida até aqui. É impossível quantificar sua imensa relevância no cenário cultural de São Paulo. Prova inequívoca do que tento mensurar aqui são as já tradicionais edições do Grande Concerto.

Realizado desde 2012, o Grande Concerto é uma mostra anual da força e pluralidade da programação da Casa de Francisca, ocupando a cada edição alguns dos palcos mais nobres da Cidade e que no ano passado lotou os 1500 lugares do Theatro Municipal de São Paulo. Na edição mais recente, além de lotar por dois dias o grandioso Auditório

do Ibirapuera, levou um público estimado em dez mil pessoas para o terceiro show realizado com o palco do Auditório aberto para o parque.

 

Este ano o Grande Concerto, além de celebrar mais uma vez a força e a vitalidade da cena musical contemporânea

de nossa cidade, foi palco também de um importante anúncio. A Casa de Francisca, como é de seu feitio, prepara-se para um novo e pequeno grande salto. Unirá forças a um outro espaço de resistência situado no centro velho de

São Paulo, o Palacete Teresa. Como nos faz pressupor a tipificação de suas edificações, Francisca caberia inteira dentro de Teresa. Mas apesar de seu prenome indicar uma certa pompa, o Palacete Teresa carrega a mesma vocação da pequena Casa de Francisca e com alguns poucos desvios necessários à sua manutenção, vem resistindo bravamente

à voracidade da especulação imobiliária predatória, mantendo-se como um dos raros exemplos preservados de arquitetura eclética, estilo característico da paisagem do centro de São Paulo no início do século 20. O antigo Palacete inaugurado em 1910, apenas três anos antes que a Casa, guarda também uma origem ligada a música, tendo sido reconhecido nas décadas de 1940 e 1950 como "A Esquina Musical de São Paulo", por ter abrigado ao mesmo tempo

em seu prédio, a sede da Rádio Record de São Paulo, a tradicional editora musical Irmãos Vitale e uma das primeiras lojas de instrumentos musicais da cidade de São Paulo, a Casa Bevilacqua, ainda hoje em funcionamento no Palacete, agora sob o nome de Casa Amadeus Musical.

 

Se é verdade que a locomotiva segue firme em seu propósito, redesenhando a cidade para poucos, gerando territórios de isolamento e segregação, é verdade também que novos vagões se acoplam à sua composição, brecando um pouco seu avanço desenfreado. Francisca e Teresa, qual duas irmãs separadas na infância, se reencontraram para escrever

um novo capítulo na história de ambas e na história de nossa cidade. Construirão juntas uma ferrovia imaginária, terna

e sonhadora, ligando a região da Paulista, lar da Casa de Francisca e o velho centro do Palacete Teresa. Será percorrida por uma pequena Maria Fumaça, um trem pras estrelas, lá onde a luz é permanente e o espaço, infinito.

 

                                                                                                                                                              

Romulo Fróes, cantor e compositor

setembro/2015

 

 

 

 

 

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